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Data da publicação: 23/10/2017

As barbearias de antigamente voltaram à moda em grande estilo, entrar em uma delas pode ajudar você a entender melhor como funciona o raciocínio matemático de uma forma divertida e inusitada

 
Barbeiro, quem faz sua barba? Uma pergunta matematicamente intrigante
Crédito: Fernando Mazzola
 
Era uma vez um barbeiro. Na cidade em que ele trabalhava, as barbearias ainda não tinham se proliferado e ele continuava, há muitos anos, fazendo o que sempre soube fazer muito bem. Dizia com orgulho a todos que entravam em sua barbearia: “barbeio todos os homens da cidade, exceto aqueles que se barbeiam a si mesmos”. O ofício que exercia aprendera com seu pai, que havia aprendido com seu avô, que havia aprendido com seu bisavô, assim por diante, de geração em geração. Um dia, um professor de matemática entrou naquela barbearia, foi recebido com a costumeira frase, e imediatamente perguntou: barbeiro, quem faz sua barba?
 
Apesar de não morar nessa hipotética cidade nem ter nenhuma informação adicional sobre os personagens especialmente criados para essa breve história, você há de convir, caro leitor, que não se trata de uma pergunta fácil de ser respondida. Por isso, não se surpreenda ao revelarmos que inúmeros matemáticos e filósofos vêm se dedicando a estudar questões como essas há séculos. São perguntas que, independentemente da resposta, sempre nos levam a um beco sem saída, ou, aproveitando o trocadilho, a uma barbearia sem saída. Por quê? Basta pensar logicamente! Caso o barbeiro responda ao professor que ele faz sua própria barba (já que é um profissional muito competente, ora bolas!), então, já não se pode dizer que ele barbeia apenas aqueles que não se barbeiam a si mesmos. Por outro lado, se o barbeiro responder que é outra pessoa que o barbeia, então, é mentira que ele barbeava todos aqueles que não se barbeavam a si mesmos.
 
Os matemáticos dão um nome a essas situações do tipo “beco sem saída”: paradoxo. Mas não se assuste, apesar de parecer complicado à primeira vista, os fenômenos inusitados que acontecem no mundo dos paradoxos não são tão complicados assim. Nesse sentido, esses fenômenos têm um comportamento em comum: aparentemente são de um jeito, no entanto, quando vamos analisá-los de perto, somos levados a conclusões contraditórias ou a situações que contradizem nossa intuição comum. É por isso que os paradoxos são capazes de dar nó na cabeça de muita gente.
 
É hora de nos despedirmos do barbeiro e caminhar até a casa do escritor que mora nessa hipotética cidade. Ele está sentado na varanda, diante de uma máquina de escrever porque não é afeito a computadores. Observando sua escassa produção, você notará que um computador não seria mesmo de grande utilidade. Durante toda a vida, esse escritor escreveu apenas uma frase: “Eu estou mentindo”. Está paralisado diante dessa afirmação, que seria o princípio do seu primeiro livro. Quando pensa que ao escrever “Eu estou mentindo”, ele está falando a verdade, nota que o início do livro é uma mentira, porque ele não está mentindo nessa frase. Por outro lado, quando pensa que a afirmação é falsa, o escritor também nota que está começando seu livro com uma farsa, porque se ele não é um mentiroso, então por que diz que é?
 
Quebrando a cabeça – Quem desejar mergulhar fundo no mundo sem saída do paradoxo do mentiroso pode ler o artigo Paradoxos Semânticos, do professor Ricardo Santos, da Universidade de Lisboa. Segundo o professor, “o paradoxo do mentiroso é conhecido desde a antiguidade e atraiu a atenção de muitos pensadores (e de algum dos mais capazes) ao longo da história. Outros não lhe atribuíram importância, ou viram-no como uma mera curiosidade, uma espécie de charada ou de quebra-cabeças sem grandes consequências”. No livro, descobrimos que a invenção do paradoxo do mentiroso é atribuída ao filósofo Eubulides de Mileto, que viveu na Grécia no século IV antes de Cristo.
 
A origem desse paradoxo também está ligada ao cretense Epimênides, que viveu na Grécia dois séculos depois de Mileto. Ele afirmou que todos os cretenses são mentirosos. “Dado que o próprio Epimênides era cretense, sua frase não poderia ser verdadeira, pois ele também teria que estar mentindo. Seria, então, falsa, ou seja, deveria existir ao menos um cretense que dizia a verdade, e se esse cretense fosse o próprio Epimênides sua afirmação deveria ser verdadeira”, escreve o matemático italiano Alessio Aprosio no livro Pinóquio no país dos paradoxos. Ele explica que esse tipo de paradoxo surge no momento em que se considera uma sentença qualquer que fale de si mesma, ou seja, uma sentença em que há autorreferência. “Tentando escrever outras sentenças autorreferentes, é possível construir diversas situações interessantes, ainda que nem sempre contraditórias”, acrescenta Alessio.
 
 
 
 
Tanto a obra de Alessio quanto a de Ricardo são pratos cheios para quem aprecia esse mundo repleto de contradições. Aliás, o professor Daniel Smania, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, confessa que o paradoxo do mentiroso é o seu predileto: “O desconforto causado por esse paradoxo surge quando tentamos compreendê-lo a partir da perspectiva da lógica matemática clássica”, diz o professor.
 
Formulada pelo filósofo grego Aristóteles, que também viveu no século IV antes de Cristo, a lógica clássica foi criada para tentar explicar como funciona o raciocínio humano e se baseia, grosso modo, em três regras básicas: o princípio de identidade; o princípio da não contradição; e o princípio do terceiro excluído. De acordo com o princípio da identidade, uma coisa é sempre idêntica e ela mesma. Já o princípio da não contradição pressupõe que uma afirmação não pode ser verdadeira e falsa simultaneamente. Por último, vem o princípio do terceiro excluído, que prevê a existência apenas de dois valores lógicos: verdadeiro ou falso, não há meio termo.
 
O fato é que, por mais que inúmeros matemáticos tenham se debruçado sobre o paradoxo do mentiroso tentando não romper com esses princípios aristotélicos, nenhum deles obteve pleno êxito diante da comunidade científica. Assim, pelo menos sob a perspectiva da lógica clássica, o paradoxo continua insolúvel.
 
 
O paradoxo do mentiroso é o favorito do professor Daniel Smania.
Crédito: Fernando Mazzola
 
Abrindo a mente – Perceba que a lógica clássica pode fazer muitos de nós nutrir certo preconceito em relação à matemática. Porque é uma lógica que nos restringe a um universo de certos e errados, de não contradições, sem meios termos. No entanto, quando observamos a trajetória humana, a todo o momento nos deparamos com situações que não podem ser classificadas como certas ou erradas, permeadas de contradições e meios termos. “A lógica clássica é linda, ninguém vai derrogá-la. Para grande parte dos fenômenos, ela é fundamental”, revela a professora Ítala D’Ottaviano, professora do departamento de filosofia da Unicamp. Em agosto, ela esteve no ICMC para falar sobre Lógica e pensamento crítico no ciclo de seminários Ciência que Elas fazem, que fez parte da programação da 20ª edição do Simpósio de Matemática para a Graduação.
 
A professora dá um exemplo interessante de um fenômeno presente no nosso dia a dia e que a lógica clássica é incapaz de explicar: as redes sociais. “Coisas emergem ali que não conseguimos entender, que não se resumem apenas à soma das partes. Nesse fenômeno, você lida, no mínimo, com graus distintos de verdade e com contradições”, explica Ítala.
 
Outro exemplo que a pesquisadora traz à tona vem da física. Nesse campo científico, existe atualmente a convivência de teorias físicas completamente contraditórias entre si. Quando um engenheiro vai construir uma ponte, precisa utilizar princípios físicos criados por Isaac Newton que, apesar de já estarem ultrapassados, ainda são essenciais nesse tipo de aplicação. Porém, esses mesmos princípios não servem para explicar como funcionam as entranhas dos átomos, um universo invisível aos olhos humanos. Nessas entranhas, há os elétrons, que têm um comportamento bastante inusitado (para não dizer contraditório): dependendo do instrumento que se usa para observá-los, eles se comportam como partículas ou como ondas. Ou seja, são, a um só tempo, uma coisa e também outra coisa.
 
Isso rompe com um dos princípios da lógica clássica, o da identidade. Outra complicação: os elétrons podem estar em dois lugares ao mesmo tempo. Para compreender esse universo, novas teorias foram criadas no campo da física quântica. “Se fosse pensar em mecânica quântica, o Aristóteles ficaria atrapalhadíssimo”, brinca Ítala. “Ou talvez ele seria brilhante e descobriria como resolver esse problema. O fato é que não se pode olhar para a mecânica quântica pensando nos princípios da lógica clássica”, completa a professora.
 
 
A professora Ítala explica que, atualmente, uma pluralidade de lógicas
convivem simultaneamente e algumas delas nos possibilitam viver em um
mundo cheio de teorias contraditórias
Crédito: Denise Casatti
 
Não é à toa que, desde o início do século XX, assistimos ao surgimento das chamadas lógicas não clássicas, já que passamos a compreender que pode existir uma pluralidade de lógicas no universo. Uma das lógicas não clássicas que possibilita vivermos em um mundo com diversas teorias contraditórias entre si, sem que uma derrube a outra, é chamada de paraconsistente. Em geral, as lógicas paraconsistentes rompem com o princípio da não contradição. “Apesar dos matemáticos desenvolverem seu trabalho baseados na suposição de que a matemática é livre de contradições, nas ciências empíricas as contradições parecem inevitáveis e a presença de contradições não é condição suficiente para que se perca o interesse pelas teorias”, diz Ítala em entrevista que concedeu à revista de Filosofia Temática Complexitas (edição de julho/dezembro de 2016).
 
Perceba agora que, se pensarmos em um universo com uma pluralidade de lógicas, talvez os preconceitos que muitos de nós nutrimos em relação à matemática possam cair por terra e passemos a olhar para essa ciência com mais afeto. Então, você poderá escolher seu paradoxo predileto, porque há uma variedade enorme, para todos os gostos e em todos os domínios. Afinal de contas, como escreve o matemático Marcelo Viana, diretor do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no artigo Paradoxos estão por toda a parte, publicado no jornal Folha de S. Paulo, os paradoxos são “uma fonte inesgotável de encantamento e um instrumento para aprimorarmos o raciocínio”.
 
 
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação ICMC/USP
 
ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DO ESPECIAL DO JORNAL DA USP 
“A MATEMÁTICA ESTÁ EM TUDO”http://jornal.usp.br/especial/matematica/
 
 
Para saber mais
Artigo Paradoxos Semânticos:
Artigo Paradoxos estão por toda a parte:
Vídeos da série “Isto é Matemática”:
 
Contato para esta pauta
Assessoria de Comunicação do ICMC: (16) 3373.9666
E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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