É 17 de agosto de 2018. Pela primeira vez em 46 anos, uma mulher toma posse como diretora do ICMC. Filha de um taxista e de uma dona de casa, Maria Cristina Ferreira de Oliveira sempre estudou em escolas públicas e se tornou professora, tal como as quatro irmãs, em uma universidade pública: a USP.
Mas este texto provavelmente não existiria se a história de Cristina não fosse uma exceção. Aliás, é provável que ela só tenha aceitado o desafio de relatar o percurso de sua vida porque compreendeu o quanto compartilhá-lo pode ensejar reflexões e até inspirar outras jornadas. Para quem tem uma personalidade reservada como ela, o autoelogio é uma impossibilidade. Talvez seja por isso que a professora se sinta incomodada em expor sua vida, embora esteja tão acostumada a estar diante de plateias em salas de aula e encontros científicos.
Mesmo com a timidez característica de Cristina nunca saindo de cena, depois de alguns momentos de bate-papo, o diálogo flui espontaneamente e de forma descontraída. Aos poucos, ela se revela com franqueza para o interlocutor, especialmente quando vai detalhando as escolhas que fez ao longo do caminho e a tornaram quem ela é hoje.
― Eu tenho muito orgulho de ter feito escola pública e estar aqui. Eu gostaria de ver mais gente com essa história entrando na USP.
Acomodada em uma das mesas no espaço coberto adjacente à lanchonete do Instituto, de jeans e blusa de malha, nesta noite de 18 de junho de 2018, ela relata de forma objetiva os princípios e valores que a motivam:
― O que muda a vida de uma pessoa é conseguir estudar, fazer um curso de graduação e se sair bem. Assim, ela tem uma opção de vida. É uma oportunidade única. Sou muito agradecida porque eu e minhas quatro irmãs tivemos a oportunidade de estudar. Hoje, a vida que temos é incomparável à vida que meus pais tiveram.
Na fala de Cristina, está a essência do que significa o conhecimento para ela: transformação. Ela e suas quatro irmãs são doutoras e docentes em universidades públicas brasileiras. Nascidas em São Carlos, as cinco irmãs estudaram em escolas públicas durante todo o ensino básico e superior.
Taxista, o pai transportava pessoas e mercadorias para cidades vizinhas em sua perua Kombi. Para reforçar a renda da família, a mãe, dona de casa, também costurava. Habilidosa, fez o próprio vestido de casamento e tentou – sem muito sucesso – ensinar o ofício às filhas e iniciá-las na arte do crochê, do bordado e da pintura em tecido.
Mas o desejo profundo daquela mãe era expresso em uma frase que dona Diomar repetia à exaustão para as garotas: “Mulher tem que estudar e ter carreira para não depender do marido”. Ela não queria ver as meninas presas a casamentos infelizes por falta de opção, algo bastante comum nos anos 60 e 70 do século passado. Descendente de lavradores italianos, dona Diomar só teve oportunidade de cursar até a 4ª série do fundamental. Por isso, mesmo com o orçamento apertado, resistiu à ideia que predominava naquele tempo e não quis que as filhas começassem a trabalhar em uma fábrica assim que concluíssem o ensino médio. Ela e o marido sabiam que, em São Carlos, as meninas tinham a oportunidade de estudar em uma das duas universidades públicas (USP e UFSCar) e, dessa forma, poderiam arcar com o sustento da família até todas se formarem.
As gêmeas – Cristina e sua irmã gêmea, Maria do Carmo, são as mais velhas do quinteto e as boas notas conquistadas na infância e na adolescência deixaram um legado para a posteridade e um fardo para as caçulas da família. Quando as mais novas tiravam nota baixa, os professores logo as lembravam de que era preciso seguir o exemplo das “gêmeas”.
Até o sétimo ano do fundamental, as duas permaneceram na Escola Estadual Bispo Dom Gastão, na Vila Prado. Depois, seguiram para a Escola Estadual Professor Arlindo Bittencourt. Foi lá que a professora de matemática Regina Tancredi sugeriu que Cristina poderia cursar matemática, mas que computação também era uma interessante opção para quem gostava de ciências exatas.
Ao concluírem o ensino fundamental, as gêmeas prestaram uma espécie de “vestibulinho” e foram aprovadas – Maria do Carmo em primeiro lugar e Cristina em terceiro – para cursar o ensino médio na Escola Estadual Doutor Álvaro Guião. Inseparáveis até então, a trajetória das duas só deixou de caminhar em paralelo no cursinho, quando Maria do Carmo foi aprovada em Engenharia Química na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no meio de 1981 e Cristina amargou a frustração de não passar em Engenharia de Materiais. Ela permaneceu no cursinho por mais seis meses sem sua gêmea. Sorte do ICMC que, no início de 1982, conquistaria uma nova aluna: Cristina começou a fazer Ciências de Computação.
“O bom de ter uma irmã gêmea é que você tem, desde pequenininha, uma pessoa que sempre vai dividir, mais ou menos, as mesmas coisas com você. Quando começa a ir à escola, você não começa sozinha. Quando vai prestar vestibular, tem alguém na mesma direção”, diz Maria do Carmo, a irmã gêmea de Cristina, logo depois da cerimônia de posse da nova diretora, na noite de 17 de agosto.
Orgulhosa da irmã, Maria do Carmo revela que a cerimônia tem um significado especial: “É uma data marcante para a gente. Amanhã, se meu pai estivesse vivo, faria 86 anos e, com certeza, estaria muito orgulhoso”. Professora no Departamento de Engenharia Química da UFSCar, onde fez a graduação em Engenharia Química, Maria do Carmo conta que a ligação forte com a irmã permanece: “Somos muito companheiras e sempre nos demos muito bem. Só nós duas moramos em São Carlos e dividimos os cuidados com a minha mãe, que está com 86 anos.”
Aliás, as outras três irmãs também seguiram carreira na área de Química, tal como Maria do Carmo, mas optaram pela graduação na USP, tal como Cristina. Marysilvia, que nasceu cerca de dois anos depois das gêmeas, é hoje professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro; cinco anos adiante, chegou Marystela, que atualmente é professora na Universidade Federal de São Carlos em Sorocaba; a caçula, Mariselma, veio uma década depois das gêmeas e, hoje, é professora na Universidade Federal do ABC.
Mulheres na USP – Ao ingressar em uma das primeiras turmas de Computação do ICMC, curso oficialmente reconhecido pelo Ministério da Educação em 1981, Cristina encontrou uma sala de aula bastante equilibrada: cerca de 50% dos estudantes eram homens e 50% mulheres. Essa informação pode causar surpresa, já que a área de tecnologia atualmente é ocupada, majoritariamente, por homens. Entre as décadas de 1970 e 1980, houve uma grande inversão nos gêneros da área de tecnologia no mundo todo, mesma época em que surgiu o computador pessoal.
A diferença começa antes do ingresso na Universidade, já que as carreiras da área de computação são pouco procuradas pelas garotas, uma situação que vem gerando preocupação dentro da academia e estimulado o surgimento de diversas iniciativas destinadas a atrair mais mulheres para as ciências exatas.
Cristina sabe quanto sua ascensão à diretoria do ICMC é simbólica nesse momento em que a busca pela igualdade de gênero ganha mais relevância a cada dia. “A Universidade como um todo, em média, está bem equilibrada na questão de gênero. Mas algumas áreas ainda têm problemas muito sérios, especialmente devido a aspectos culturais. Aqui em São Carlos, em que há o predomínio das ciências exatas e tecnológicas, temos um problema localizado. Mas, felizmente, pouco a pouco isso está sendo modificado. A posse de uma primeira diretora no ICMC já é um bom sinal. É um marco importante e isso vai ajudar, certamente, esse campus de São Carlos a ter uma alteração, uma renovação”, afirmou o reitor da USP, professor Vahan Agopyan, na noite da posse de Cristina.
Tornar-se a primeira mulher a ocupar esse cargo de direção não foi algo que Cristina planejou, simplesmente aconteceu de forma natural, especialmente a partir do momento em que foi convidada para ser vice-diretora do Instituto pelo professor Alexandre Nolasco de Carvalho na gestão anterior (2015-2018). O ICMC mantém uma tradição de continuidade e, ao longo dos anos, a tendência tem sido de que quem ocupa a vice-diretoria assuma a direção na gestão seguinte.
Apesar de destacar que nunca teve dificuldades na carreira por ser mulher, uma situação embaraçosa aconteceu quando Cristina foi indicada para fazer seu primeiro estágio, antes mesmo de se formar. O professor Fernão Stella de Rodrigues Germano, docente do ICMC que já faleceu e dá nome ao maior auditório do Instituto, recebeu certo dia o telefonema de uma grande empresa que atuava em São Carlos e estava em busca da indicação de um estagiário. Fernão logo falou sobre Cristina. Do outro da linha, o representante da empresa frisou que queria a indicação de um homem. Fernão não hesitou e respondeu: “Ela é o melhor homem que eu tenho aqui no momento.” Resultado: Cristina conseguiu o estágio e trabalhou na empresa durante os últimos seis meses do curso, em 1985.
Mas ela já havia sido capturada pela magia da ciência antes, quando conquistou uma bolsa da FAPESP para desenvolver seu projeto de iniciação científica. Lembra-se que essa foi a primeira vez que obteve alguma renda. A iniciação científica despertou em Cristina o desejo de prosseguir na carreira acadêmica e fazer mestrado. O que não imaginava é que, apenas dois meses depois de se formar, ela se tornaria professora no ICMC.
― Naquele tempo, a pós-graduação em computação estava começando, havia pouca gente no Instituto e não era preciso fazer concurso para ingressar como docente. Bastava ser aprovado no processo seletivo e se comprometer em ingressar no mestrado.
Foi assim que Cristina e uma colega de sua turma, Rosane Minghim, que é professora aposentada do ICMC, tornaram-se docentes da USP em fevereiro de 1986.
― Hoje, ela está na University College Cork, mas continuamos amigas e colaboradoras em pesquisa.
Amor e doutorado – “Ninguém teve que pedir mais a mão de uma mulher em casamento do que eu”, brinca Osvaldo Novais de Oliveira Jr, que é casado com Cristina há 35 anos. Professor e diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC), Osvaldo é mais conhecido como “Chu”, apelido carinhoso que ganhou na adolescência, tempo em que a expressão “Chuchu beleza” era moda.
Chu explica que, além de receber o “sim” de Cristina, precisou do aval de muito mais gente: primeiro do senhor Walter, pai da moça; depois foi a vez do então departamento de Ciências de Computação e Estatística do ICMC, que precisou liberar a professora recém-contratada para estudar no exterior; a seguir, foi necessário o aceite da Universidade de Wales, no Reino Unido, onde Cristina fez o doutorado; por último, até a FAPESP entrou na dança do “sim”, já que a ida do casal ao Reino Unido só aconteceu porque houve apoio financeiro da instituição, que concedeu uma bolsa de doutorado à Cristina.
Com a permissão de todas as instâncias cabíveis, Chu e Cristina se casaram no dia 14 de março de 1987. Nem tiveram tempo de curtir a lua de mel. No dia seguinte, embarcaram no voo rumo a Bangor, no Reino Unido, onde Chu já estava fazendo o doutorado desde setembro de 1986 na Universidade de Wales.
― Eu nunca tinha viajado para fora do país e meu medo era que estudar lá não desse certo.
O medo que Cristina sentiu foi reforçado por um fator adicional: para aproveitar a oportunidade no exterior, ela precisava abandonar o mestrado que havia começado no IFSC. A escolha deu tão certo que ela acabou terminando o doutorado direto antes do tempo previsto, que costuma ser de quatro anos.
Em julho de 1990, Cristina e o marido voltaram ao Brasil. Um ano e dois meses depois, nasceu Ligia. Dois anos e quatro meses depois, chegou Tiago. “Eu tenho muito orgulho da minha mãe e dos meus avós. Eu sei que eles insistiram muito para que as filhas estudassem. Ela é um exemplo de retidão, muito responsável e muito correta com tudo”, disse Ligia, emocionada, no fim da cerimônia de posse da mãe como diretora do ICMC. Formada em Direito pela USP, ela mora em São Paulo e diz que se identifica muito com Cristina.
Como não poderia deixar de ser, o ICMC tem papel relevante nessa história de amor e doutorado. Foi em uma festa promovida por Edson Moreira, hoje professor aposentado do ICMC, que eles se conheceram. Ele já tinha visto a moça algumas vezes, porque ela descia em um ponto de ônibus próximo da república em que Chu morava: “Mas eu nunca teria coragem de me aproximar dela, porque no começo dos anos 80 os estudantes eram muito mal vistos pelos são-carlenses. Não havia qualquer esperança”. Nas festas do Centro Acadêmico Armando Sales de Oliveira (CAASO), a desigualdade de gênero não favorecia qualquer aproximação, em média havia uns 500 homens e umas 5 mulheres.
Amigo de Edson, Chu estava saindo da festa quando Cristina chegou com algumas amigas. Uma delas, Mônica, era filha do professor Fernão e amiga de Edson. Então, naquele universo tão escasso de mulheres, Edson insistiu para que o amigo não fosse embora. Deu certo: Chu tomou coragem e chamou Cristina para dançar. Na noite seguinte, domingo, ele a convidou para ir à pizzaria. Ela aceitou. Pronto: o casal nunca mais se separou. Era agosto de 1985 e Chu já estava preparando as malas para embarcar no doutorado. O que ele nem Cristina imaginavam é que o amor construído até setembro de 1986 se fortaleceria ainda mais durante os seis meses que permaneceram a um oceano de distância.
As trajetórias científicas dos dois às vezes também se cruzam e fazem brotar projetos e artigos. No pós-doutorado, optaram por um local em que ambos pudessem desenvolver seus projetos e foram, carregando os dois filhos, para a Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, em 2000, onde ficaram por um ano. Chu conta que a esposa é uma líder nata e diz que sua gestão no ICMC “será muito bem feita, porque tudo o que ela faz é muito bem feito”.
Para Cristina, o Instituto precisa formar cientistas, bacharéis, engenheiros e licenciados com habilidades para desempenhar suas missões não apenas com competência, mas com sabedoria e ética.
― À busca por formar recursos humanos de alto nível, gerar e transferir conhecimento para a sociedade, precisamos agregar nossa luta por uma educação de qualidade também nos níveis de ensino fundamental e médio para todo o país. Eu acredito que o acesso à educação de qualidade é a forma mais ampla e mais justa de oferecer igualdade de oportunidades de acesso ao ensino superior àqueles que assim desejarem. Eu e minhas irmãs, aqui presentes, somos um exemplo.
Nesse trecho de seu discurso de posse, a diretora deixa clara sua missão e completou agradecendo a todos os professores que a estimularam a seguir sua carreira.:
― Desde o ensino fundamental até a universidade, tive o privilégio de contar com a sabedoria, o apoio e o entusiasmo de muitos professores genuínos, pessoas bem formadas, competentes, exigentes, dedicadas, comprometidas com sua missão e com disposição para apresentar aos alunos um mundo de possibilidades.
A história da primeira mulher a assumir a direção do ICMC é também um estímulo para as garotas enxergarem o mundo das ciências exatas como uma possibilidade. Só assim a história de Cristina deixará de ser uma exceção.
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
Vídeo: Renato Francoi Amprino – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP