Segundo o professor Delbem, um dos principais objetivos do centro é encurtar a distância entre o conhecimento científico e o desenvolvimento de produtos inovadores para a área da saúde pública
Você vai a uma consulta médica em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e descobre que, considerando o que está sentindo, deveria ter procurado uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Ao chegar na UPA, você é encaminhado a um hospital. Enquanto isso, os sintomas só pioram. Esse é um simples exemplo que ilustra o quanto a peregrinação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) afeta a vida de pacientes, profissionais da saúde e gestores, reduzindo a eficiência do atendimento e aumentando os custos.
Levando em conta problemas como esse, um novo centro de pesquisa aplicada acaba de ser criado na USP unindo 160 especialistas de diversas áreas do conhecimento para aplicarem ferramentas de ponta de inteligência artificial (IA) no enfrentamento dos desafios da gestão em saúde. É o Centro para Inteligência Artificial em Gestão de Saúde (ciaGSaude), com sede no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos.
“Os modelos de IA conseguem associar informações e podem facilitar o acesso da população aos serviços de saúde. Você pode, por exemplo, interagir com um sistema de IA desenvolvido para ajudá-lo a entender melhor o que você está sentindo. A partir desse primeiro contato, com a ajuda da IA, você descobrirá qual a unidade de saúde mais adequada para atendê-lo”, explica o coordenador do ciaGSaude, Alexandre Delbem, professor do ICMC. Ele destaca que, nos casos em que uma pessoa necessita de atendimento em uma região diferente de onde mora, esse tipo de apoio pode ser ainda mais crucial.
“Toda essa dificuldade de ser atendido, e de ser atendido a tempo, na verdade, muitas vezes agrava a situação de saúde de uma pessoa. E isso acontece por quê? Porque o sistema é complexo”, acrescenta o professor. Para se ter uma ideia dessa complexidade, é importante destacar que o Brasil tem o maior sistema de saúde pública do mundo: o Sistema Único de Saúde (SUS), um modelo misto (público-privado) criado há 35 anos, descentralizado e articulado nos níveis federal, estadual e municipal. Cerca de 70% da população brasileira depende do SUS, que realiza aproximadamente 2,8 bilhões de atendimentos por ano.
Segundo Delbem, um dos principais objetivos do centro é encurtar a distância entre o conhecimento científico e o desenvolvimento de produtos inovadores para a área da saúde pública. Chamada de pesquisa translacional, essa prática pode possibilitar que as soluções de IA sejam aplicadas para facilitar o percurso da população entre os diferentes níveis de atendimento em saúde, levando em conta o compartilhamento de informações entre as unidades destinadas a cuidar dos casos de baixa complexidade (atenção primária, oferecida, por exemplo, em UBS), dos casos intermediários (atenção secundária, por exemplo, UPA) e das situações de alta complexidade (atenção terciária, por exemplo, hospitais). A proposta é construir caminhos inteligentes para atender de forma otimizada as demandas da população.
De acordo com o coordenador do ciaGSaude, as ferramentas de IA têm um potencial gigantesco para ajudar a resolver diversos desafios da gestão em saúde do país: ao permitir a coleta e análise de dados dos atendimentos do sistema, de forma mais ampla e estruturada, revelam-se também onde estão os principais gargalos, o que contribui para que os gestores possam tomar decisões baseadas em evidências e desafogar o sistema de saúde. “Assim, os recursos podem ser empregados com mais eficiência, e as pessoas conseguem ser melhor atendidas e de maneira mais rápida”, reforça Delbem.
Há, ainda, inúmeras outras aplicações, incluindo ferramentas de IA para auxiliar os médicos no diagnóstico e orientar a prescrição de tratamento. “Com acesso às informações sobre disponibilidade, acesso e preço dos medicamentos daquela região, o médico pode prescrever um tratamento mais adequado à realidade do paciente”, completa o professor.
O ciaGSaude foi inaugurado oficialmente durante um evento realizado no dia 28 de agosto no InovaUSP; sua criação foi apoiada pelo Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina
Lançamento da iniciativa ― O ciaGSaude foi inaugurado oficialmente durante um evento realizado no dia 28 de agosto no Centro de Inovação da USP (InovaUSP), em São Paulo. Sua criação foi apoiada pelo Centro de Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina (CIAAM), um dos nove centros multidisciplinares que a Reitoria da USP criou para realizar pesquisas em temas estratégicos da sociedade. Uma das metas do ciaGSaude é catalisar os conhecimentos dos grupos de excelência da USP e de outras instituições do Estado de São Paulo, agilizando sua aplicação na gestão em saúde.
“Nós precisamos fazer a tradução desse conhecimento, a popularização desse conhecimento, para que ele alcance mais fortemente a sociedade e possamos ter maiores impactos de toda essa excelência acumulada”, afirmou a secretária de informação e saúde digital do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad. Presente no evento de lançamento, Ana Estela é professora da Faculdade de Odontologia da USP e citou vários exemplos do quanto a IA já vem sendo empregada na área da saúde e do seu potencial para aprimorar ainda mais os serviços oferecidos à população também na área de vigilância em saúde, prevendo a ocorrência de emergências sanitárias e pandemias.
“Estamos desenvolvendo a possibilidade do prontuário falado, que é muito interessante, por exemplo, em uma teleconsulta. Porque, na teleconsulta, você depende muito da manutenção do seu olhar com o olhar do paciente, para ele se sentir conectado e perceber que você está prestando atenção nele”, exemplificou a Secretária. Com essa solução, as informações ditas pelo paciente são automaticamente registradas, de forma escrita, no prontuário, evitando a necessidade do médico digitar o que está ouvindo: “É o tipo de ferramenta que pode liberar o médico ou o profissional de saúde para as tarefas mais nobres”.
Viabilizar a implantação dos prontuários falados, algo inimaginável até pouco tempo atrás, tornou-se possível devido ao desenvolvimento da IA, por meio dos grandes modelos de linguagem (LLMs), utilizados no ChatGPT, por exemplo. É essa tecnologia que pode ajudar na triagem inicial dos pacientes e evitar uma peregrinação desnecessária pelo sistema de saúde.
Durante o evento de lançamento, o diretor do ICMC, André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho, coordenou a mesa redonda que discutiu o estado atual e futuro da inteligência artificial no Brasil
Riscos e limitações ― Como qualquer solução desenvolvida por seres humanos, a IA está sujeita a limitações e seu uso implica riscos. Para assegurar o uso ético, responsável e confiável da IA, os pesquisadores do ciaGSaude estão buscando criar ferramentas em que seja possível reverter cada etapa do processo de construção, alterando fatores que podem gerar resultados equivocados. “Já temos tecnologias que permitem ter um controle total das ferramentas de IA, mas isso tem um custo. E tudo depende do propósito de cada solução a ser criada”, revela Delbem.
O professor cita alguns exemplos: se você está fazendo uma triagem para ter uma ideia geral das doenças que mais afetam a população de uma cidade, a ferramenta criada pode ter um menor grau de precisão. Mas se você está construindo um sistema para registrar a fala de uma pessoa em um prontuário ou para detectar alterações em exames de imagens, a precisão deve ser muito maior.
Para Ana Estela, esse é um ponto crucial: “Nós precisamos entender criticamente como a IA funciona para podermos estar no controle. Ela pode ajudar no diagnóstico, mas o diagnóstico nunca deve ser delegado totalmente para a IA. A supervisão humana, a supervisão profissional, tem que ser soberana”.
Da esquerda para a direita: Rodolfo Jardim de Azevedo (coordenador geral de tecnologias e parcerias em inovação da Fapesp); Eugênio Garcia (diretor do departamento de ciência, tecnologia e propriedade intelectual do Ministério das Relações Exteriores); Ana Estela Haddad (secretária de informação e saúde digital do Ministério da Saúde); André de Carvalho (diretor do ICMC); e Cristina Shimoda, (coordenadora geral de transformação digital do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação)
Parcerias ― O ciaGSaude é resultado de uma parceria entre a USP, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e duas outras instituições: a Fundação Faculdade de Medicina (FFM); e a Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP (FAEPA). A USP é a responsável por fornecer os recursos humanos e a infraestrutura física para o centro, já as demais fundações fazem o aporte dos recursos financeiros.
“No caso de um Centro de Pesquisa em Engenharia, como o ciaGSaude, a gente faz uma parceria com o mercado que é muito interessante, porque você tem os pesquisadores buscando ir lá na fronteira do conhecimento, mas você também tem alguém querendo usar esse conhecimento de forma mais rápida. Então, positivamente falando, conseguimos ligar essas duas pontas”, explica Rodolfo Jardim de Azevedo, coordenador geral de tecnologias e parcerias em inovação da Fapesp.
Nos próximos cinco anos, as atividades do ciaGSaude serão financiadas com recursos públicos (50%) e privados (50%). A partir dos resultados alcançados nesse período, o centro poderá estender suas ações por mais cinco anos. Serão 10 anos de pesquisa aplicada, um horizonte de tempo curto para enfrentar os complexos desafios na gestão em saúde no Brasil.
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP
Crédito das imagens: Sabrina Gomes
Mais informações
Acesse o site do ciaGSaude: https://ciagsaude.icmc.usp.br/pt-BR
Leia a reportagem sobre o evento de lançamento:https://jornal.usp.br/?p=927463
Saiba mais sobre o CIAAM: https://ciaam.usp.br/pt/
Conheça os Centros de Pesquisa em Engenharia/Centros de Pesquisa Aplicada da Fapesp: https://bv.fapesp.br/pt/604/centros-de-pesquisa-em-engenharia
Dúvidas? Escreva para ciagsaude@usp.br






