

“O processo foi desafiador, mas também uma oportunidade de consolidar tudo o que aprendi ao longo da minha trajetória”, afirma Leo sobre sua preparação para o concurso que a levou à docência no ICMC | Foto: Arquivo Pessoal
Em um país onde a população trans enfrenta os maiores índices de violência, exclusão educacional e dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, a professora Leo Ribeiro faz história ao se tornar a primeira docente trans do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos.
Recém-aprovada em concurso público, Léo entrará na sala de aula pela primeira vez neste semestre, levando sua expertise para a formação de novos profissionais e consolidando um marco na luta por inclusão e diversidade na universidade. Mulher transgênero, foi durante o doutorado no próprio Instituto que ela reafirmou sua identidade de gênero. “Estou ocupando um espaço em que muitas pessoas não esperam ver uma mulher trans. Isso, por si só, já é uma mensagem poderosa e acredito que vai ajudar a desconstruir várias ideias equivocadas que foram ensinadas sobre o que é ser uma mulher trans”, destaca.
Neste primeiro semestre, a docente assumirá três turmas, ministrando aulas de Processamento de Imagens, Laboratório de Algoritmos Avançados e Laboratório de Introdução à Ciência da Computação. “Estou bastante animada para dar início a essa nova fase da minha vida profissional”, relata.
O início da jornada da professora Leo, em uma das mais respeitadas instituições de ensino do mundo, ocorre em um momento de crescente discurso de ódio contra a população trans, intensificado especialmente após a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Por isso, de acordo com a professora Gabrielle Weber, uma das primeiras professoras trans da USP, a nomeação da Leo é um marco ainda mais significativo. “É um avanço sem precedentes e representa um aumento importante na representatividade trans no quadro docente da USP”, destaca. Gabrielle é docente na Escola de Engenharia de Lorena (EEL) e assumiu sua identidade de gênero há seis anos, quando já atuava como professora na instituição.
Para ela, vivemos um momento em que é necessário comemorar “as primeiras”, pois ainda há uma carência de referências positivas. “Quanto mais pessoas trans ocuparem esses espaços, mais natural isso se tornará. E, mais importante ainda, a nossa presença na Universidade não apenas normaliza essa ocupação, mas também cria condições para que outras pessoas trans também tenham acesso a esses espaços”, afirma Weber, que também é colunista do Jornal da USP.

“Acredito que minha presença vai contribuir para desconstruir ideias equivocadas e ampliar a compreensão das pessoas sobre o que significa ser uma mulher trans” | Foto: Arquivo Pessoal
Ela é uma das coordenadoras do Corpas Trans, grupo de pesquisa e extensão criado em 2021, dedicado a quantificar, analisar e propor ações para a inclusão e o apoio à população transgênero da USP. “Nossas pesquisas mostram que a situação na USP ainda é alarmante quando se trata da inclusão de pessoas trans. Enquanto a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) já adota um processo seletivo específico para estudantes trans no vestibular, e a Unicamp está em estágio avançado para adotar algo semelhante, na USP, essa discussão simplesmente não existe”, pontua Weber.
Por outro lado, a criação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), em 2022, representou um passo importante para o fortalecimento de ações voltadas ao acolhimento e à equidade na USP. A PRIP tem como função “propor, coordenar, centralizar e apoiar políticas transversais na universidade para alunos(as), docentes e servidores(as), com foco em inclusão, permanência e equidade, sob a ótica da interseccionalidade”.
Em 2023, uma das iniciativas implementadas foi a troca das placas dos banheiros, que passaram a indicar explicitamente que as pessoas podem utilizá-los de acordo com o gênero com o qual se identificam. “Na prática, só oficializamos algo que já era garantido por lei”, explica a professora Marina Andretta, presidente da Comissão de Inclusão e Pertencimento do ICMC.
Marina afirma que um grupo de trabalho, composto por representantes de coletivos trans da USP e da PRIP, está debatendo a possibilidade de reserva de vagas para pessoas trans no ingresso na graduação. Para ela, a chegada da professora Leo Ribeiro ao corpo docente marca um novo momento para o ICMC impactando alunos e colaboradores técnicos administrativos e contribuindo para a naturalização da diversidade. “Muitas pessoas nunca tiveram contato com alguém trans e, às vezes, não sabem o que isso significa. Ter uma professora trans exercendo seu trabalho como qualquer outro docente pode ajudar a desmistificar preconceitos. No fim das contas, é apenas mais uma característica. O que define a qualidade de um professor não é o gênero, e sim seu conhecimento e dedicação”, destaca.

Leo desenvolveu pesquisas de destaques durante o doutorado, apresentando artigo em uma das conferências mais importantes do mundo em visão computacional | Foto: Arquivo Pessoal
Trajetória – Ao longo de sua trajetória no ICMC, Leo mostrou seu talento e determinação, envolvendo-se em inúmeras atividades enquanto aluna da graduação de Ciências da Computação. No início do curso, ela pretendia desenvolver projetos em empresas do ramo ou mesmo abrir uma startup de tecnologia, mas a experiência de fazer iniciação científica começou a mudar sua perspectiva.
A grande virada aconteceu quando Leo conseguiu uma bolsa de estágio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), ainda na graduação, e passou quatro meses se dedicando exclusivamente à pesquisa na Universidade de Surrey, na Inglaterra. “Meu orientador no exterior, John Collomosse, era especialista em aprendizado multimodal e essa experiência foi transformadora, porque além de eu ter voltado ao Brasil querendo continuar na área acadêmica, esse acabou sendo o tema da minha pesquisa no doutorado”, explica.
Sua dedicação e desempenho nas três iniciações científicas não passaram despercebidos e, após concluir a graduação, entrou direto no doutorado, pesquisando busca de imagens baseadas em desenhos. “Ela tinha bagagem de pesquisa e experiência suficiente para ingressar diretamente no doutorado, sem a necessidade de passar pelo mestrado”, explica o professor Moacir Ponti, do ICMC, que era seu orientador.
De acordo com Moacir, quando Leo estava prestes a concluir o doutorado, ela deixou claro seu desejo de ser professora em uma universidade pública no Brasil. Mesmo recebendo propostas para trabalhar como pesquisadora na Europa e no Chile, ela optou por se preparar para concursos públicos no país. “Leo é uma profissional extremamente competente. Seu currículo é muito forte, principalmente pela qualidade e impacto dos seus trabalhos. Além disso, ela é uma pessoa que tem uma postura integradora e colaborativa”, destaca o ex-orientador.

Leo pretende continuar coorientando trabalhos na Unicamp, como o apresentado por Victória Pedrazzoli Ferreira (vestida de rosa) | Foto: Arquivo Pessoal
Futuro – Agora como professora do ICMC, Leo quer dar continuidade às suas pesquisas iniciadas no pós-doutorado, na Unicamp. Após defender o doutorado, ela passou a integrar o laboratório da professora Sandra Ávila, cujo grupo de pesquisa complementa a linha de investigação que Leo desenvolveu no doutorado. “Vou dar continuidade ao trabalho que comecei na Unicamp, fortalecendo parcerias e redes de colaboração. Hoje, já cooriento algumas alunas em projetos conjuntos entre Unicamp e USP. Os temas incluem detecção de abuso infantil, monitoramento de propaganda infantil em vídeos e classificação de lesões em exames de colposcopia”, acrescenta.
Além da pesquisa, Leo tem grande interesse em atuar na parte administrativa da Universidade para contribuir com a inclusão e a diversidade no ambiente acadêmico: “Quero me envolver ativamente na Comissão de Inclusão e Pertencimento. Além disso, também tenho interesse na Comissão de Graduação, porque ela lida diretamente com os alunos. Acho que questões de diversidade e pertencimento precisam ser discutidas nesse contexto”.
Sobre o ambiente que encontrará enquanto docente no ICMC, Leo afirma que a Universidade costuma oferecer um espaço mais acolhedor que o mercado de trabalho: “O ICMC – e a USP como um todo – sempre foram ambientes amigáveis para mim nesse sentido. Mas sei que muitas pessoas trans enfrentam desafios que eu não tive”.
Ela reforça que sua presença na Universidade tem um impacto importante na representatividade e na desconstrução de preconceitos. “O impacto que quero deixar é justamente esse: mostrar que pessoas trans existem, que ocupamos esses espaços e que nossa presença não tira o direito de ninguém. Pelo contrário, fortalece a diversidade e a inovação dentro da academia”, finaliza.

Leo com alunos e um orientando na Conferência sobre Gráficos, Padrões e Imagens (SIBGRAPI 2024), que ocorreu em Manaus | Foto: Arquivo Pessoal
Texto: Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica
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Dados preliminares sobre a pesquisa do Corpas Trans que mapeou as demandas do público trans e travesti da USP: instagram.com/p/C3-dMagLGke/?img_index=1
Leia os artigos da professora Gabrielle Weber no Jornal da USP: Gabrielle Weber – Jornal da USP
Saiba mais sobre o Corpas Trans no site da iniciativa, nas redes sociais (Instagram, Facebook, Twitter, YouTube) ou pelo e-mail This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it..
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