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Todos os cientistas podem contribuir para aproximar esses dois mundos, mas ainda há uma carência de profissionais dispostos a fazer isso
Data da publicação: 18/12/2018


 

Em palestra na Câmara dos Deputados, André de Carvalho explica os princípios que regem o assessoramento científico
(crédito da imagem: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
 
 
Se você é um cientista, independentemente da área de pesquisa em que atua, é muito provável que esteja assistindo às cenas que marcam este início do século XXI com apreensão. Ao mesmo tempo em que vivenciamos um avanço sem precedentes no desenvolvimento tecnológico e na compreensão humana sobre os fenômenos que acontecem dentro e fora de nós, assistimos ao fortalecimento de uma muralha contra as evidências científicas. Narrativas que contestam o aquecimento global, a eficácia de vacinas, os acontecimentos históricos são alguns dos tijolos que sustentam o muro e bloqueiam o diálogo entre cientistas e sociedade. O comprometimento dessa relação, por sua vez, dificulta o acesso aos possíveis benefícios dos novos conhecimentos que surgem todos os dias no meio acadêmico.
 
Se você é um cientista, é também muito provável que já tenha se questionado ou esteja se perguntando: como posso ajudar a transpor essa muralha? Muitos outros pesquisadores, como você, têm se deparado com a mesma questão e buscado respostas. Não é por acaso que um movimento mundial vem ganhando força nos últimos anos: o assessoramento científico, uma ideia que está se espalhando pelos parlamentos do mundo. “Não queremos impor nossa vontade ou nossa opinião, mas aconselhar quem toma as decisões no executivo, no legislativo e no judiciário, em todos os níveis de governo – federal, estadual e municipal”, explica o professor André de Carvalho na manhã do dia 19 de novembro, no plenário 8 do anexo II, na Câmara dos Deputados, em Brasília.
 
André percorreu, literalmente, os quase 800 quilômetros que separam a capital do país e o Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, para falar sobre Assessoramento científico para um mundo em mudança. A palestra foi parte do ciclo Inovação em pauta: diálogos para transformar, uma série de palestras promovidas pela Diretoria de Inovação e Tecnologia da Informação da Câmara dos Deputados.
 
“Foi uma ótima experiência e pude conhecer várias iniciativas importantes realizadas pela Câmara dos Deputados relacionadas a decisões baseadas em evidências”, conta o professor, que é vice-diretor do ICMC e reconhecido como um dos maiores especialistas brasileiros na área de Inteligência Artificial. O convite para a palestra surgiu logo depois do Workshop de Assessoria Científica a Governos, que aconteceu no Instituto de Estudos Avançados da USP, em São Paulo, nos dias 29 e 30 de outubro. Cerca de 30 pessoas participaram do Workshop, que foi promovido pela Rede Internacional para Assessoramento Científico Governamental (INGSA, na sigla em inglês).
 
No fim de 2017, o vice-diretor do ICMC foi selecionado para ocupar uma vaga no comitê criado pela INGSA especialmente para debater os desafios da assessoria científica na América Latina e no Caribe. “No Workshop, o foco foi a capacitação dos participantes em aconselhamento cientifico. Discutimos como podemos agir para solucionar alguns dos problemas que ocorrem no nosso país, além de alternativas para formar uma rede de pessoas interessadas na temática e para expandir o número de participantes no comitê da INGSA.”
 
Mas em que consiste o aconselhamento científico? Segundo a INGSA, envolve uma variedade de processos e acordos por meio dos quais os conhecimentos científicos são levados em conta para a formulação de políticas em diferentes níveis de governo, construindo uma colaboração produtiva capaz de lidar com diversos tipos de problemas. A instituição ressalta ainda que, nesse contexto, os conhecimentos científicos incluem evidências e especializações provenientes de todos os campos da ciência.
 
Como exemplo de uma política pública bem-sucedida, que leva em conta evidências científicas, André cita o Programa Nacional de HIV/Aids do Brasil. Desde 1996, o Ministério da Saúde distribui, de forma gratuita e universal, os medicamentos para HIV/Aids, em um dos programas mais abrangentes e eficientes do mundo, que fornece serviços de assistência à saúde, informação e educação para prevenção, diagnóstico precoce e tratamento a pessoas que, muitas vezes, estão à margem das políticas públicas. Para se ter uma ideia dos bons resultados alcançados, nos últimos cinco anos houve uma queda de quase 16% no número de novos casos de HIV, segundo o Boletim Epidemiológico HIV/Aids 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde em novembro: em 2012, foram registrados 21,7 casos por 100 mil habitantes; em 2017, foram 4,8; em 2012, houve 5,7 mortes relacionadas à Aids por 100 mil habitantes, enquanto em 2017 foram registradas 4,8 mortes por 100 mil habitantes
 
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhecem o Brasil como referência mundial no controle da epidemia. Até a reconhecida revista científica inglesa “Lancet” ressaltou a importância da política de HIV/Aids brasileira em fevereiro deste ano.
 
Por outro lado, são inúmeros os casos mal sucedidos, em que as evidências científicas não foram levadas em conta na busca por soluções. André cita três exemplos recentes: o deslizamento de terra que deixou 15 mortos no Morro da Boa Esperança, em Niterói, no Rio de Janeiro, dia 10 de novembro; o viaduto na marginal Pinheiros, em São Paulo, que cedeu na madrugada de 15 de novembro; e a crise de imigração que atinge o Estado de Roraima.
 

Workshop de Assessoria Científica a Governos foi realizado em São Paulo. À frente estão os dois coordenadores da iniciativa: o professor André de Carvalho (à esquerda) e Marcos Silveira Buckeridge, presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP) e professor do Instituto de Biociências da USP
(crédito da imagem: Leonor Calasans/IEA-USP)
 
 
Um mundo em mudança – Na apresentação na Câmara dos Deputados, André explicou que o trabalho desenvolvido pela INGSA é inspirado no documento Transformando o Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, um plano de ação composto por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas. O documento surgiu em setembro de 2015, quando representantes dos 193 estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) se reuniram em Nova York e reconheceram que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, incluindo a pobreza extrema, é o maior desafio global e um requisito imprescindível para o desenvolvimento sustentável.
 
“Os pesquisadores têm um papel crucial a desempenhar no fornecimento de evidências, conhecimentos e dados para informar, medir e monitorar a implementação dos ODS”, ressalta o manifesto Aconselhamento Científico para os Objetivos Globais, elaborado pela INGSA. O documento elenca três formas de contribuição científica em prol do alcance dos ODS: ajudar no planejamento da jornada; contribuir com a decisão sobre as ferramentas necessárias a esse fim; auxiliar os formuladores de políticas públicas a se manterem no caminho mais adequado para chegar às metas.
 
O manifesto conduz os pesquisadores a uma série de reflexões: o que são evidências científicas? Quais evidências devem ser levadas em conta na tomada de decisões? “Quando falamos de ciência, precisamos nos lembrar de que não se trata de uma compilação de fatos, mas sim de um conjunto de processos que visam descobrir informações confiáveis sobre o mundo ao redor e dentro de nós”. O texto enfatiza, ainda, que existem outras formas de evidência que têm impacto na política, tais como crença, observação e experiência: “A ciência deve entender sua relação com essas outras formas de evidências e se apresentar respeitosamente, reconhecendo que seu posicionamento é, em última análise, ligado à robustez de seus processos.”
 
O documento explica, ainda, que os pesquisadores chamados para realizar um aconselhamento científico poucas vezes lidam com problemas que podem ser resolvidos com respostas diretas do tipo “sim” ou “não”. Eles costumam ser convidados para atuar em problemas caracterizados por valores que se contrapõe e precisam lidar com a incerteza sobre o futuro. Ou seja, situações em que os especialistas encontrarão múltiplas opções plausíveis à disposição e poderão discordar sobre qual é a melhor saída. Muitas vezes, isso implicará a escolha por um caminho em que haverá vencedores e perdedores.
 
 

André fala sobre a Agenda 2030 durante a palestra Assessoramento científico para um mundo em mudança
(crédito da imagem: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
 
 
A ciência da humildade – Quando André se coloca diante da plateia, na Câmara dos Deputados, ele ressalta no começo da conversa que seu objetivo não é impor uma opinião ou uma vontade. A colocação não é mera figura de retórica, está em sintonia com um dos princípios preconizados pela INGSA a quem deseja atuar em prol do aconselhamento científico: a humildade. A instituição define humildade como uma “luta por uma visão precisa de si mesmo e de seu papel, combinada com um respeito apropriado pelo poder e pelas limitações da ciência e da tecnologia”. A atitude de humildade, segundo a INGSA, pode ser traduzida em diretrizes práticas relacionadas à humildade de competência, de motivação e de papel.
 
A humildade de competência se refere a um posicionamento aberto a novas formas de conhecimento e à necessidade de aprender com os outros, com as diversas disciplinas, tradições, gêneros e perspectivas geopolíticas que caracterizam o mundo. Para ser humilde em competência, é preciso reconhecer os limites do próprio conhecimento.
 
Já a humildade de motivação leva ao reconhecimento de que todos nós temos nossa própria história, cultura e motivações políticas. Nesse sentido, é inescapável que existam conflitos de interesses e vieses nas nossas investigações científicas: “Toda ciência é carregada de valores, começando com a seleção de uma direção de pesquisa e terminando com a escolha de como serão comunicados os resultados. Mas o objetivo não é eliminar valores, mas evitar a defesa de interesses desonestos”.
 
Por último, há a humildade para compreender o papel que o cientista exerce. Quem presta aconselhamento científico deve estar ciente de que seu papel é informar os formuladores das políticas públicas e não elaborar essas políticas. Vale lembrar que a elaboração de políticas públicas sempre envolve considerações que vão além das evidências científicas, por isso, a INGSA recomenda: “Não confunda analfabetismo científico com falta de competência ou inteligência”.
 
 

Workshop reuniu cerca de 30 participantes no Instituto de Estudos Avançados da USP, em São Paulo
(crédito da imagem: Leonor Calasans/IEA-USP)
 
 
A ciência nossa de cada dia – As reflexões trazidas pelo documento elaborado pela INGSA lançam luz para todos que desejam construir pontes entre o mundo da ciência e o mundo da política. Talvez um dos primeiros passos que cada um poderia dar rumo a essa construção é perguntar a si mesmo: qual a importância da minha pesquisa para a sociedade? Você conseguiria explicar a relevância do que faz para alguém que não é especialista em sua área de conhecimento?
 
O estabelecimento de uma relação de diálogo entre cientistas e não-cientistas é condição necessária para reduzir a distância entre a ciência e os demais campos de atuação humana. Para isso, os cientistas têm que estar dispostos a desenvolverem suas habilidades de comunicação e se tornarem capazes de explicar a qualquer pessoa, em uma linguagem simples e sem jargões, a relevância da ciência que fazem.
 
A apreensão que sentimos em relação às incertezas do futuro talvez possa ser reduzida se a próxima geração de pesquisadores for estimulada, desde o início da carreira, a transpor muros e construir uma ciência mais humilde, em sintonia com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Se você quer contribuir com esse desafio, vale a pena responder à pesquisa dos professores James Wilsdon e Jasper Montana, da Universidade de Sheffield, no Reino Unido. Eles querem compreender melhor o alcance dos conceitos e métodos relacionados às evidências científicas e à política. Não serão coletadas informações pessoais e você pode responder ao questionário até dia 21 de dezembro por meio deste link: icmc.usp.br/e/cbd17.
 
 
 
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP 
 

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