Como bom estudante de matemática, Hildebrando Munhoz Rodrigues sabia calcular com precisão o quanto faltava para cruzar a linha de chegada. Avaliou, então, que não havia como prosseguir a jornada dali em diante. Era hora de jogar a toalha e sair de campo.
Mas os sete amigos do time da república em que Hildebrando morava não o abandonaram: foram em busca de aliados para ajudar o estudante a ultrapassar as barreiras surgidas naquele final do primeiro ano do curso de Licenciatura em Matemática em Rio Claro. A informação logo chegou ao conhecimento do professor Mário Tourasse Teixeira.
― Um dia, já era quase final de 1963, eu estava saindo e um professor me abordou: “Ah, você que é o Hildebrando? Seus colegas me falaram de você e queria fazer uma proposta. Estou com uns problemas lá na minha pesquisa que não consigo resolver, e eles me falaram que você é bom. Quer me ajudar a resolver esses problemas?”. Eu falei: “Quem sou eu, professor? O senhor é um professor! Eu estou no primeiro ano ainda, aprendendo as coisas!”. Ele disse: “Não, não tem importância! Eu vou pedir uma bolsa para você. Assim você vai ter alguma coisa para se sustentar!”.
Enquanto a bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) não era aprovada, o que só aconteceria em 1964, o professor Mário explicou que tinha recursos de outro projeto para serem utilizados, e sugeriu que o dinheiro fosse destinado a Hildebrando enquanto a bolsa não chegava.
― Ele tirou um talão de cheques do bolso, fez um cheque para mim, que eu não vou lembrar quanto era, mas suficiente para eu passar alguns meses. Você sabe de que projeto ele estava falando? Era mentira! Não tinha projeto nenhum, mas ele estava sabendo da minha dificuldade financeira e não ia dar o dinheiro só por dar, queria que eu o ajudasse. Então, estudei com ele por um ano, trabalhando na pesquisa na área de lógica. Era uma pessoa maravilhosa.
Sentado em um sofá azul claro, no segundo andar da Biblioteca Achille Bassi, Hildebrando relata emocionado seus primeiros passos como pesquisador em matemática. Os pequenos olhos castanhos desse senhor de 78 anos se enchem de lágrimas e o obrigam a secá-los com o lenço de pano que carrega no bolso da calça social azul marinho, combinando perfeitamente com a camisa branca de listras azuis. Talvez, se não fosse pelo gesto solidário do professor Mário, Hildebrando teria abandonado a maratona acadêmica logo após a largada.
Felizmente, o projeto de iniciação científica com o professor Mário foi apenas o pontapé inicial de uma longa trajetória, que prosseguiu pelo mestrado, doutorado e pós-doutorado, culminando com a obtenção do título de Professor Emérito do ICMC.
Antes da largada ― A primeira paixão do pequeno Hildebrando foi o futebol. Começou a jogar aos 10 anos e chegou a fazer testes para ingressar em times profissionais, além de atuar em equipes amadoras nas quais conquistou títulos em campeonatos. No tempo da faculdade, continuou jogando.
― Eu sempre joguei na defesa ou de volante, nunca joguei na frente. Mas eu tinha uma vantagem como jogador: era muito veloz, fazia 100 metros em praticamente 11 segundos. Não é trivial você fazer 100 metros em 11 segundos. Eu não era muito hábil com a bola, mas era muito veloz, tinha uma boa condição física, boa impulsão. Então, eu me saí bem no futebol mais pela velocidade.
A característica marcante levou Hildebrando a participar de algumas maratonas. Na pasta repleta de imagens e recortes de jornais que trouxe para a entrevista, destacam-se duas fotos do professor cruzando a linha de chegada nas maratonas do Rio de 1986 e de 1988, sempre com uma das mãos unida à de seu treinador.
Até hoje, o esporte marca forte presença na vida de Hildebrando. Diariamente, é possível vê-lo nadando mil metros na piscina do São Carlos Clube, exceto às segundas-feiras, quando há limpeza no local, e o professor aproveita para caminhar e correr durante o tempo regulamentar de uma partida de futebol, 90 minutos. Revela que tem bons hábitos, fumou por pouco tempo, quando estava no Tiro de Guerra, mas logo parou. Gosta de beber uma cervejinha, de vez em quando, com moderação. Raramente se permite saborear uma caipirinha e nunca exagera na alimentação.
Até cerca de cinco anos de idade, viveu com a família em um sítio, conhecido como Terra Seca, situado na cidade de Neves Paulista e que pertencia a seu pai.
― Meu pai nunca terminou o ensino primário. Ele sabia só escrever o nome dele, mas não tinha formação nenhuma. E minha mãe, com oito anos de idade, foi tirada da escola para trabalhar de empregada para uma família lá na Espanha. Então, ela também não estudou.
Descendente de espanhóis, o pai de Hildebrando veio da Argentina para o Brasil quando jovem e tinha a habilidade de construir casas e lidar com a terra. O pequeno Hildebrando chegou a ajudá-lo em algumas atividades de construção e a cuidar da horta e dos pomares do sítio. Com o tempo, o pai foi abandonando esse tipo de trabalho e passou a fazer viagens com um caminhão, até que se tornou definitivamente caminhoneiro.
― Ele ficava um tempo fora e, quando voltava, trazia muitas coisas, porque ele comprava, sabia onde é que tinha e tal… Ainda lá no sítio, ele chegava e enchia a dispensa de coisas. Mas eu queria muito ir nas viagens e ele nunca deixou. Ah, também, você já viu, vida de caminhoneiro, nem adianta falar, né?
Na casa da família, o idioma que reinava era o espanhol. Quando a irmã mais velha de Hildebrando começou a frequentar a escola que existia perto do sítio, ela simplesmente não sabia falar português.
― A minha mãe sempre foi muito preocupada com a nossa parte educacional porque ela queria estudar e não pôde. Então, quando meu pai foi sorteado e ganhou um bom dinheiro (ele tinha um título, não sei como funcionava isso), minha mãe falou assim: com esse dinheiro, nós vamos para a cidade, comprar uma casa lá e mudar para que nossos filhos possam estudar!
Assim, o casal partiu com seus quatro filhos ― duas meninas e dois garotos ― para São José do Rio Preto, onde nasceu a irmã mais nova de Hildebrando.
Preparo para a maratona ― Realizar o sonho de cursar uma faculdade demandava empenho, mesmo para um estudante que tinha bom desempenho em todas as disciplinas como Hildebrando. Depois de concluir o ensino fundamental I no Grupo Escolar Cardeal Leme, ele prestou um exame de admissão para estudar no Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves e passou em primeiro lugar. Lá concluiu o ensino fundamental II e médio, que naquele tempo era chamado de científico.
― Quando estava no curso científico, meu horizonte não era muito amplo, porque as condições econômicas da minha família não permitiam que eu fosse tentar algum curso que demandasse uma preparação, que envolvesse algum investimento mais alto como medicina, por exemplo. Tanto que, nos dois últimos anos do curso científico, eu trabalhava no Banco Bandeirantes do Comércio durante o dia e estudava à noite. Assim, fui economizando algum recurso para poder ir para a universidade.
No banco, Hildebrando exercia a função de contínuo: fazia limpeza e entregava avisos, tudo a pé.
― Nem bicicleta eu tinha. Andava à beça todos os dias! Depois, passei a trabalhar dentro do banco como responsável pela carteira de cobrança. Aí, eu já estava ganhando um pouco melhor. Até que chegou uma hora que eu falei para o gerente: “Quero pedir demissão!”. Ele respondeu: “Mas como que você vai pedir demissão agora, que você está progredindo aqui no banco? Está ganhando melhor e tal.” Falei: “Ah, infelizmente, eu vou fazer vestibular. Eu vou ter que sair mesmo, não vai ter jeito.”
Foram cerca de dois anos trabalhando no banco e, na sequência, com o dinheiro que conquistou, o jovem seguiu para São Carlos, onde fez cursinho no Colégio CAASO. O sonho era passar no vestibular da USP e fazer engenharia, mas só foi aprovado na segunda opção: Licenciatura em Matemática na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, atualmente pertencente à UNESP.
― No segundo ano, em 1964, obtive a bolsa de iniciação científica com orientação do professor Mário Tourasse Teixeira. Nos anos seguintes, até 1966, tive como orientador o professor Nelson Onuchic. Com esses dois excelentes professores, consegui uma boa formação básica em matemática, que foi fundamental para os meus estudos de pós-graduação, mestrado e doutorado, e depois para os meus programas de pós-doutorado nos Estados Unidos.
Hildebrando destaca que nada disso teria sido possível se não fossem as bolsas de estudo que recebeu desde a graduação. Foram elas que garantiram ao jovem pesquisador as condições financeiras para prosseguir na carreira acadêmica.
Chegada ao ICMC ― Uma cena já é tradição durante o período letivo no ICMC: aos sábados de manhã, as lousas de algumas salas de aula são tingidas de giz por estudantes que, em inglês, explicam conceitos matemáticos nada triviais para uma turma pouco convencional. Os pupilos que assumem o papel de alunos têm pouco em comum já que se mistura quem ainda cursa o ensino médio com graduandos dos mais diversos semestres de vários cursos oferecidos pelo campus da USP em São Carlos e até pós-graduandos. O que os une é a vontade de aprender matemática no programa de iniciação científica criado pelo professor Hildebrando Munhoz em 1974.
― Um projeto de iniciação científica abre portas para os alunos: eles passam a ter médias melhores, aprendem a estudar, aprimoram o inglês, passam a editar textos e começam a ganhar prêmios.
Mesmo aposentado desde 2013, o professor nunca interrompeu o programa no ICMC. Ele sabe da importância da iniciativa porque foi durante sua graduação na UNESP, participando de um programa similar a esse, coordenado pelo professor Nelson Onuchic, que Hildebrando decidiu seguir carreira acadẽmica.
A dinâmica das atividades realizadas aos sábados por Hildebrando é inspirada nas ações desenvolvidas pelo professor Nelson: estimula-se que os participantes apresentem, alternadamente, seminários abordando tópicos em matemática profunda. Há também aulas especiais para a resolução de problemas. Ao mesclar, em um mesmo espaço, alunos mais experientes na arte da pesquisa matemática com estudantes iniciantes, cria-se um cenário estimulante para o compartilhamento de aprendizados.
― Aos poucos, os estudantes vão tomando gosto pela matemática. Não precisam fazer provas e a gente constrói um ambiente de colaboração, que não é estressante, já que o erro também ensina.
Desde 2010, com o aumento na procura dos estudantes interessados em participar do programa, Hildebrando estabeleceu uma parceria com o professor Marcio Gameiro, do ICMC. Até hoje, coordenam juntos a iniciativa e já perdeu a conta de quantos alunos de iniciação científica orientou, mas com certeza mais de 100. Muitos deles conseguiram ser aprovados em processos seletivos de universidades renomadas no exterior e conquistaram duplo diploma. Alguns ocupam hoje cargos de destaque em universidades de ponta no Brasil e no exterior.
Além de orientar Hildebrando na iniciação científica, o professor Nelson Onuchic foi o responsável por encaminhá-lo ao mestrado, iniciado no antigo Instituto de Pesquisas Matemáticas, que era localizado na Escola Politécnica da USP, em São Paulo, onde tinha como orientadores os professores Chaim Samuel Honig e José de Barros Neto. Esse Instituto, posteriormente, foi incorporado ao Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, fundado em 15 de janeiro de 1970.
No final daquele primeiro ano do mestrado, em dezembro de 1967, Nelson convidou Hildebrando para participar de uma nova empreitada no Departamento de Matemática da Escola de Engenharia de São Carlos. Havia uma vaga para professor instrutor no local, para onde Nelson e sua esposa, a também matemática Lourdes de La Rosa Onuchic, haviam se transferido depois que se desvincularam da UNESP em Rio Claro.
Assim, Hildebrando iniciou a trajetória como professor na USP, em São Carlos, ainda no mestrado, e voltou a ser orientado pelo professor Nelson. Nessa época, a pós-graduação na USP estava passando por um momento de transformação e passaria a ser organizada seguindo um modelo similar ao atual.
― O professor Nelson falou assim: “Ah, uma vez que vocês está começando, você é jovem, vamos entrar no regime novo!” E eu entrei nesse novo modelo, por isso que a minha dissertação de mestrado em matemática é considerada a primeira a ser defendida na USP São Carlos.
Logo depois que Hildebrando defende a dissertação Invariância para sistemas não autônomos de equações diferenciais com retardamento e aplicações, em 12 de novembro de 1970, já mergulha no doutorado no recém-criado ICMSC, também sob orientação do professor Nelson. Na sequência, em 1974, participa de um congresso na Brown University, onde apresenta um trabalho baseado na tese de doutorado e conhece pessoalmente um dos pesquisadores parceiros de Nelson: o professor Jack Hale, um dos principais expoentes na área de equações diferenciais e sistemas dinâmicos. Em 1975, parte para Providence, em Rhode Island, nos Estados Unidos, para fazer pós-doutorado na Brown University com o professor Jack.
Nesse tempo, Hildebrando já era casado e tinha uma filha. Nas idas e vindas à Rio Claro para visitar os amigos, depois de formado, conheceu a professora de geografia Maria Ivana da Silva, no bar Panqueca. Casaram-se em 1974 e embarcaram para os Estados Unidos com a primeira filha ainda bebê. Em uma consulta médica ao pediatra, descobriram que, devido à falta de oxigenação durante o parto, a pequena enfrentaria dificuldades para se desenvolver. O casal a levou para os melhores hospitais do mundo, mas ela nunca conseguiu andar, falar e tinha dificuldades para se alimentar. Faleceu aos 16 anos.
No retorno ao Brasil, depois que Hildebrando concluiu o pós-doutorado em 1978, a família aumentou com o nascimento do casal de gêmeos Cristina e Daniel. Cristina mora em Campinas, cursou economia e depois direito; já Daniel é engenheiro espacial e faz doutorado na Rússia.
Homenageado por suas notáveis atividades ao longo da carreira na Universidade, Hildebrando recebeu o título de Professor Emérito em cerimônia realizada no ICMC no dia 16 de abril de 2015. Além de pesquisar e orientar alunos em projetos de iniciação científica, mestrado e doutorado, dar aulas na graduação e na pós-graduação, ele assumiu diversos cargos administrativos no Instituto: foi chefe do Departamento de Matemática; coordenador do Programa de Pós-Graduação em Matemática e diretor do ICMC de 1994 a 1998.
― Procurei iniciar uma gestão mais participativa, identificando vocações de nossas lideranças científicas e estimulando a elaboração de projetos de infraestrutura na nossa instituição, com a melhoria das salas de aula e dos laboratórios de pesquisa, que culminaram com a construção dos blocos 1 e 5. Isso foi fundamental para a implantação de novos cursos de graduação, criados em gestões posteriores. Também houve uma reestruturação geral das nossas áreas administrativa, financeira, acadêmica e também da Biblioteca Achille Bassi.
Hildebrando conta que, no fim da gestão, ouviu muitas pessoas dizerem que ele tinha deixado um legado de muitas realizações porque assumiu a direção durante um tempo de “vacas gordas”. Para o professor, o segredo do sucesso é outro:
― Dinheiro nunca é problema. O que nós precisamos é de bons projetos. Se você tiver um bom projeto, aí você tem que brigar para conseguir os recursos e realizá-lo.
Correndo a infinita maratona da vida, Hildebrando aprendeu que nunca há uma linha de chegada:
― Eu procuro viver cada dia. Cada dia eu estou nascendo. Depois, na hora que eu vou dormir, eu estou morrendo. E depois que dorme, é outra vida! No outro dia, eu acordo e nasci outra vez. Então, vamos pensar no que fazer daquele dia. É assim…
Texto e fotos: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
Vídeo: Renato Francoi Amprino – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
Mais informações
Uma história de dedicação e excelência: professor Hildebrando completa 70 anos e recebe homenagens no ICMC