Depois da pandemia de Covid-19, quando os avanços científicos começaram a influenciar ainda mais diretamente o cotidiano das pessoas, ficou claro que não basta apenas produzir ciência no Brasil – é fundamental divulgá-la de forma acessível. Em uma iniciativa para enfrentar esse desafio, duas estudantes de pós-graduação da USP São Carlos estão descomplicando a ciência por meio de bate-papos descontraídos, em que falam não só sobre suas áreas de pesquisa, mas também sobre temas como fake news, saúde mental na academia e os desafios do dia a dia de pesquisadoras e pesquisadores. E tudo isso acontece por meio de um podcast, formato que conquistou os brasileiros ao permitir que o ouvinte aproveite o conteúdo enquanto realiza outras atividades.
Comandado por Julia Jaccoud, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), e Julia Marcolan, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC), o podcast Qual Julia disse isso? estreou em março de 2021, quando as duas apertaram o play nos gravadores improvisados na sala da casa que dividiam. Além do nome, as estudantes compartilhavam o mesmo entusiasmo pela divulgação científica. Jaccoud, que já acumulava experiência com seu canal no YouTube, A Matemaníaca, onde conquistou centenas de fãs por sua maneira única de explicar matemática, foi quem convenceu Marcolan a se aventurar na frente dos microfones. Marcolan, que até então preferia os bastidores, organizando eventos de divulgação científica, nunca havia pensado em “dar a cara e a voz” para criar conteúdo. No entanto, com um empurrãozinho de Jaccoud, decidiu se juntar à amiga e encarar esse novo desafio. Foram 36 episódios na primeira temporada e 8 na segunda, acumulando cerca de 7 mil plays até que, em maio de 2022, as dificuldades de conciliar a vida acadêmica e pessoal fizeram com que a produção do podcast fosse interrompida.
No entanto, retornar ao projeto era um desejo das criadoras que, neste ano, descobriram a possibilidade de contar com o apoio da infraestrutura física e técnica da Superintendência de Tecnologia da Informação (STI) da USP São Carlos. “Enviamos uma proposta para o STI com o aval do professor Guilherme Matos Sipahi, do IFSC, que se tornou nosso mentor e parceiro no projeto”, explica Marcolan.
Com o projeto aprovado, elas passaram a contar com o estúdio de gravação e o suporte técnico de um profissional dedicado à edição dos episódios, que são lançados semanalmente, às terças-feiras, e acompanharão o semestre letivo da universidade, totalizando 18 episódios ao final do ano. Uma novidade desta temporada é a possibilidade de acompanhar as Julias não apenas em áudio, mas também em vídeo. Os episódios estão disponíveis no Spotify, e também podem ser assistidos no canal A Matemaníaca no YouTube, oferecendo uma experiência mais interativa ao público. Para Jaccoud, que já se desafiou inúmeras vezes a explicar questões da matemática sem o auxílio de ferramentas visuais, o novo recurso é interessante. Já Marcolan brincou sobre não gostar de aparecer em vídeo: “Temos que pensar na roupa que vamos usar, antes gravávamos de qualquer jeito.”
As Julias também destacam que o momento atual de suas vidas foi essencial para o retorno do podcast. Jaccoud afirma que o avanço na carreira acadêmica trouxe mais confiança para abordar temas complexos. “Eu me sinto muito mais preparada e segura para falar de matemática, já que voltei ao ambiente acadêmico, algo que sempre desejei para fortalecer minhas ações de divulgação científica”, explica.
Para Marcolan, o impacto foi inverso. “O podcast fortaleceu a minha trajetória acadêmica. Antes, eu tinha muita dificuldade em me comunicar e entrava em pânico quando precisava falar em público. Agora, aprendi a me expressar muito melhor”, relata a aluna do IFSC.
Conteúdos mais qualificados – De acordo com as pesquisadoras, o apoio institucional da USP trouxe um nível mais elevado de profissionalismo ao podcast Qual Julia Disse Isso?. Com uma equipe técnica qualificada e uma estrutura de gravação moderna, o som e a edição dos episódios ganharam qualidade, permitindo que elas dediquem mais tempo à criação de conteúdos aprofundados. Cada episódio é cuidadosamente planejado com pelo menos três semanas de antecedência, e os temas são escolhidos levando em consideração o que está acontecendo no mundo e os pilares principais do podcast: matemática, física, vida acadêmica e o bem-estar dos pós-graduandos. Os dois últimos, em particular, aproximam tanto os calouros quanto os que estão em níveis avançados de formação. “Quando o Sipahi acompanhou a gravação do primeiro episódio, ele comentou que foi a primeira vez que ouviu alguém falar sobre a vida acadêmica por uma hora inteira sem sentir vontade de chorar. Ele ficou entusiasmado em participar de uma conversa sobre ciência de forma tão leve e descontraída,” lembra Marcolan.
A produção do podcast é colaborativa. Uma das Júlias pesquisa e organiza os tópicos de cada episódio, enquanto a outra revisa e complementa o conteúdo, garantindo uma abordagem mais completa e diversa. Além disso, o professor Sipahi desempenha um papel fundamental no processo, revisando os roteiros e oferecendo novas ideias. “O Sipahi se tornou um grande parceiro nesta temporada, trazendo insights que enriquecem o conteúdo e garantem a precisão durante as gravações”, destaca Jaccoud.
No primeiro episódio da nova temporada, que foi ao ar em 6 de agosto, as Julias fizeram algo especial: cada uma apresentou a pesquisa da outra, proporcionando ao público uma visão mais pessoal sobre suas áreas de estudo. Desde então, o podcast já explorou temas como as Olimpíadas, fake news e Alan Turing, o pai da computação moderna. O feedback do público foi extremamente positivo, com muitos comentários no Instagram @qualjuliadisseisso. “No episódio sobre Turing, recebemos vários elogios. Um dos ouvintes, que está escrevendo uma dissertação sobre ele, disse que o episódio foi muito bem articulado”, conta Jaccoud. No YouTube, o episódio sobre Emmy Noether também recebeu ótimos feedbacks.
Há quase 10 anos, quando criou o canal A Matemaníaca, Julia Jaccoud não imaginava o papel central que a divulgação científica ganharia na sociedade. Apesar do crescimento de canais voltados à ciência, ela ainda vê grandes desafios, principalmente na matemática, porque o interesse do público não costuma surgir de forma natural. “A matemática ainda está atrás de outras ciências, como astronomia ou biologia, que têm um espaço consolidado na mídia. Nosso trabalho é despertar essa curiosidade nas pessoas”, afirma a aluna do ICMC.
Outro desafio que as Julias enfrentam é a falta de reconhecimento acadêmico da divulgação científica, uma vez que incluir essas atividades no Lattes ou utilizá-las como critério em concursos, bolsas e editais costuma não trazer um benefício concreto. “Muitas vezes, a divulgação é vista como um ‘dom’, mas, na verdade, ela exige formação e profissionalização. No fim das contas, estamos produzindo conhecimento financiado pelo público, e esse conhecimento precisa ser devolvido de forma acessível à sociedade”, reforçam.
Por meio do podcast Qual Julia Disse Isso?, as Julias consolidam sua visão de que a divulgação científica no Brasil precisa ser mais forte, profissionalizada e, acima de tudo, feita com empatia. Para elas, o podcast não é apenas um meio de compartilhar conhecimento, mas também uma plataforma para dar voz a questões importantes que impactam a sociedade.
Texto: Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica