Eliana Caus apresentando seu Trabalho de Conclusão de Curso do MBA em Big Data e Inteligência Artificial da USP | Foto: Ana Santiago
Utilizando Inteligência Artificial (IA) e Big Data, a pesquisadora Eliana Caus analisou fatores que podem impactar a alfabetização e a capacitação profissional de pessoas com síndrome de Down ou Transtorno do Espectro Autista (TEA). Desenvolvida no MBA em IA e Big Data da USP, que é oferecido pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), sua pesquisa traçou um perfil abrangente das famílias e das pessoas com deficiência (PcDs), revelando que a alfabetização desse público está mais associado a terapias como fonoaudiologia, equoterapia e ABA (Análise do Comportamento Aplicada) do que à escolaridade dos familiares. Além disso, os dados indicaram maior associação à alfabetização em PcDs pertencentes às faixas etárias de até 10 anos ou entre 15 e 19 anos, bem como àquelas vinculadas à uma das Apaes participantes do estudo. Outro dado revelador foi que a maioria das famílias entrevistadas possui uma renda mensal entre um e três salários mínimos e que nenhum dos PcDS possuía atividade remunerada formal, mesmo aqueles com mais de 25 anos.
Segundo Eliana, que é mãe de um jovem com síndrome de Down e TEA, e vice-presidente da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Vitória (ES), isso acontece, entre outros fatores, devido à dependência do Benefício de Prestação Continuada (BPC), pois ao ingressarem no mercado, os beneficiários têm o auxílio suspenso, que frequentemente é a principal fonte de renda da família. “Transformar essas pessoas em membros produtivos da sociedade não deveria ser penalizado com a perda do BPC. Além de beneficiar o indivíduo, a família e o próprio Estado”, argumenta.
Ela também destaca a importância de considerar o impacto econômico e social enfrentado por essas famílias. “Os dados que coletei podem trazer uma nova perspectiva sobre esse cenário e contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas que promovam um planejamento econômico mais inclusivo e justo”, conclui Eliana, que foi orientada pela professora Roseli Romero, vice-coordenadora do MBA e professora do ICMC.
Momentos marcantes da jornada de Eliana Caus durante a coleta de dados para a pesquisa |Foto: Arquivo Pessoal
Coleta de dados e desafios – Eliana mergulhou em um processo de coleta de dados que durou meses e envolveu visitas a diversas instituições do Espírito Santo, seu estado de origem. Para desenvolver sua base de dados, a pesquisadora entrevistou 100 familiares e 113 pessoas com deficiência, em uma rotina que envolveu longas conversas. Mas antes disso, Eliana enfrentou diversas dificuldades. Primeiro, precisou lidar com as exigências burocráticas para obter a aprovação do Conselho de Ética da USP, o que demandou tempo. Posteriormente, nas instituições visitadas, o desafio continuou, com etapas igualmente complexas e demoradas. Foi necessário apresentar a pesquisa às diretorias, obter a autorização dos responsáveis pelas áreas dos assistidos e organizar o apoio logístico para a coleta de dados. Além disso, ela planejava minuciosamente o acesso às APAEs em horários compatíveis com o tempo de permanência dos familiares nas instituições. “Alguns dias eu saía de casa às 4h50 da manhã para chegar às instituições no horário certo. A experiência foi exigente, mas recompensadora, e mesmo com desafios e reveses, eu sentia que estava cumprindo um propósito maior”, conta a pesquisadora.
Em cada visita, além de realizar as entrevistas, ela oferecia um acolhimento único para as famílias, criando kits com brindes para cada entrevistado, além de lanches que eram servidos e tornavam a experiência mais agradável. Além disso, ao final de muitas entrevistas, os familiares expressaram gratidão pela escuta ativa de suas histórias. “Durante as entrevistas, muitos participantes começavam hesitantes, mas, com o tempo, abriam-se profundamente, expressando o quanto era raro alguém realmente ouvi-los. Esse retorno foi muito significativo para mim: não foi apenas uma pesquisa, mas uma série de conversas autênticas e respeitosas”, relata Eliana.
Um dos brindes que Eliana entregou aos familiares que entrevistou para sua pesquisa | Foto: Arquivo Pessoal
Descobertas – Para analisar os dados, a professora universitária aposentada utilizou técnicas de Estatística Descritiva, e para identificar padrões nos dados usou Aprendizagem de Máquina Não Supervisionado através da técnica de Análise de Correspondência Simples (ANACOR), que permitiram identificar alguns padrões:
- Perfil Socioeconômico: A maioria das famílias entrevistadas possui uma renda mensal entre um e três salários mínimos, sendo que o percentual das que vivem com apenas um salário mínimo é significativamente alto. A pesquisa também revelou que a figura central no cuidado dessas pessoas é, em 90% dos casos, a mãe biológica, que geralmente não exerce nenhuma atividade remunerada. De acordo com a pesquisadora, essa realidade está relacionada às múltiplas funções desempenhadas por essas mães, como levar os filhos a terapias e cuidar das necessidades diárias em casa.
- Terapias como diferencial: Técnicas como fonoaudiologia, equoterapia e ABA mostraram forte associação com a alfabetização, enquanto variáveis familiares, como escolaridade ou renda, não se provaram estatisticamente significantes. Além disso, foi identificado que muitos dos participantes fazem uso de medicação contínua, sendo a risperidona uma das mais frequentemente relatadas. “Esses dados foram analisados detalhadamente, considerando o tipo de deficiência, as medicações utilizadas e os resultados obtidos em termos de desenvolvimento”, explica Eliana Caus. Ela também observou que o desempenho de muitos participantes estava relacionado a tratamentos para ansiedade, condição que pode interferir diretamente no aprendizado. “Essas descobertas mostram que intervenções terapêuticas específicas podem fazer uma diferença significativa no desenvolvimento dessas pessoas”, ressalta a pesquisadora.
- Educação recente mais eficaz: Os dados indicam avanços na alfabetização das gerações mais jovens, com 83% das crianças menores de 10 anos já alfabetizadas. Entre os participantes que alcançaram o Ensino Médio, o índice de alfabetização chega a aproximadamente 50%, representando um avanço em relação aos indivíduos com mais de 20 anos, cuja taxa varia entre 16% e 30%. “Ainda assim, a análise do nível de escolaridade evidencia desafios significativos”, destaca Eliana. Apenas 38% dos participantes no Ensino Fundamental I estão alfabetizados, enquanto essa proporção aumenta para 50% no Ensino Fundamental II e Médio. “Esses dados sugerem que a alfabetização não está sendo plenamente consolidada nos anos iniciais da educação básica, o que aponta para a necessidade de reforçar as estratégias de ensino nessas etapas fundamentais”.
- Desafios no mercado de trabalho: Entre as barreiras mais mencionadas para inserção de PcDs no mercado de trabalho estão: desenvolvimento de tarefas como organizar finanças, fazer compras e utilizar transporte (82%), chamadas de Atividades Instrumentais de Vida Diária (AIVD); idade insuficiente (57%); o desenvolvimento incompleto de tarefas básicas como alimentar-se, vestir-se e realizar higiene pessoal (56%), chamadas de Atividades de Vida Diária (AVD); a dificuldade em entender o mundo do trabalho (46%); falta de interesse dos empregadores por pessoas com deficiência (24%); e a falta de preparo (19%).
Eliana Caus contou com a orientação e o apoio da professora Roseli Aparecida Francelin Romero | Foto: Ana Santiago
Devido aos prazos do MBA, alguns dados, como os áudios das entrevistas, ainda não foram analisados, mas Eliana planeja utilizar a técnica de análise de sentimentos para captar as nuances emocionais nas respostas em uma próxima fase. “Esse tipo de análise é um processo longo, pois envolve transcrever e limpar os áudios, retirando interrupções e falas pessoais, tudo em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Planejo iniciar a análise de sentimentos assim que concluir a coleta e, dessa forma, dar voz às emoções dos participantes”, explica.
Eliana também pretende dar continuidade à coleta de dados nas APAEs de todo o Espírito Santo, além de outras associações voltadas para o atendimento a pessoas com autismo e síndrome de Down. “Há aproximadamente 41 APAEs e algumas instituições adicionais, e meu objetivo é coletar o maior número possível de entrevistas”, relata.
A pesquisadora também planeja apresentar seus achados em congressos e eventos científicos relacionados às pessoas com deficiência, além de retornar às instituições participantes em 2025, oferecendo às famílias um resumo de sua pesquisa, possibilitando uma compreensão dos impactos do estudo. Para Eliana, esse retorno é parte essencial do ciclo de pesquisa, pois valoriza as contribuições das famílias e incentiva uma cultura de acompanhamento dos resultados.
“Um dos meus objetivos principais é que esta pesquisa ajude a conscientizar sobre as barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência e suas famílias, e que os resultados possam servir como base para políticas públicas mais eficazes”, destaca.
Amor à educação – Nascida em Alfredo Chaves, no Espírito Santo, Eliana Caus sempre viu na educação uma poderosa via de transformação e superação. Vinda de uma família humilde, começou a trabalhar desde jovem, desenvolvendo um senso de responsabilidade social e econômica que a acompanharia por toda a vida. Mesmo com uma rotina intensa, ela nunca deixou de estudar, alimentando a crença de que o conhecimento abriria portas para um futuro melhor. Aos 18 anos, ela conta que ficou fascinada por tecnologia quando se deparou pela primeira vez com um computador em uma empresa em que trabalhava. Desde então, buscou se especializar, chegando a oferecer seu trabalho gratuitamente para adquirir experiência em programação. Esse interesse pela computação guiou boa parte de sua trajetória, e ela construiu uma carreira sólida na área, se tornando professora em um Centro universitário privado de Vitória (ES).
Com o nascimento do filho Marcelo, a professora chegou a considerar abandonar sua carreira e seguir uma nova formação em áreas como fonoaudiologia ou fisioterapia. Porém, um insight mudou sua perspectiva: mesmo que se dedicasse anos a esses estudos, não poderia “congelar” o tempo para seu filho. Foi nesse momento de clareza que ela percebeu que já possuía uma ferramenta poderosa para ajudá-lo e, potencialmente, contribuir para a vida de outras pessoas com deficiência: a tecnologia. A partir daí, Eliana percebeu que poderia utilizar a computação para criar soluções voltadas à inclusão. Decidiu, então, que orientaria projetos de TCCs alinhados com essa nova missão e mergulhou de forma ainda mais profunda nos estudos, participando de congressos e montando uma biblioteca pessoal com mais de 90 livros sobre temas como síndrome de Down, dislexia e autismo.
A pandemia de Covid-19 trouxe ainda mais clareza sobre a importância desse propósito e Eliana decidiu que era o momento de se dedicar integralmente à pesquisa sobre a deficiência. Em 2021, aposentou-se para seguir seu sonho de aprofundar seus estudos, aprimorando suas habilidades técnicas. Encontrou no MBA em IA Big Data da USP a formação ideal para desenvolver competências em análise de dados, uma área que sempre considerou essencial desde sua trajetória como programadora e professora de banco de dados. Para ela, ter a chancela da USP, foi imprescindível para aprimorar seus conhecimentos e lhe abriu portas nas instituições com as quais queria trabalhar.
Eliana com seus dois filhos e marido | Foto: Arquivo Pessoal
Texto: Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica